Entre 2022 e 2024, o estado de São Paulo registrou um aumento de 120% no número de mortes de crianças e adolescentes em decorrência de intervenções policiais. É o que mostra o relatório “As câmeras corporais na Polícia Militar do Estado de São Paulo (2ª edição): mudanças na política e impacto nas mortes de adolescentes”, produzido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
O crescimento foi observado no mesmo período em que ocorreram mudanças nos protocolos de uso das câmeras corporais e em outros mecanismos de controle das forças de segurança.
Em números absolutos, 77 crianças e adolescentes entre 10 e 19 anos foram mortas em intervenções policiais no estado em 2024, mais que o dobro registrado em 2022 (35 vítimas).
Considerando todas as crianças e adolescentes vítimas de mortes violentas, 34% delas foram mortas por policiais em 2024 - o que significa que 1 em cada 3 mortes violentas intencionais nessa faixa etária ocorreu em intervenções policiais. Em 2022, esse percentual era de 24%. Entre adultos, a proporção passou de 9%, em 2022, para 18%, no último ano.
Outro número que cresceu em São Paulo foi o de policiais militares mortos em serviço. Em 2024, 14 agentes foram assassinados enquanto cumpriam sua função, um crescimento de 133% em relação a 2022.
O cenário de 2022 a 2024 é o oposto ao observado na primeira edição do estudo, lançado em 2023, que indicou uma queda de 66,7% nas mortes de crianças e adolescentes de 10 a 19 anos entre 2019 e 2022, atribuída ao uso das câmeras corporais e à adoção de políticas para controle do uso da força policial. No mesmo período, também houve reduções de 62,7% nas mortes gerais por intervenção de agentes de segurança e de 57% nas mortes de policiais militares em serviço – tornando a experiência de São Paulo uma referência internacional em políticas de controle da letalidade policial.
Apesar dos bons resultados, houve uma inflexão na política de controle do uso da força, resultando em um crescimento de 153,5% nas mortes totais em decorrência de PMs em serviço entre 2022 e 2024, de acordo com dados da Secretaria Estadual de Segurança Pública de São Paulo. O estudo também mostra que houve aumento das mortes provocadas pela polícia tanto nos batalhões que utilizam câmeras corporais (+175,4%) quanto nos que não utilizam (+129,5%).
“As recentes mudanças nas políticas de controle de uso de força resultaram no crescimento da letalidade policial tanto nos batalhões que utilizam as câmeras como nos demais, na evidência de que a tecnologia é importante, mas precisa estar associada a outros mecanismos de controle. As interações entre policiais militares e cidadãos ficaram mais violentas, por isso gera grande preocupação a substituição das câmeras por uma nova tecnologia que não possui gravação ininterrupta. É urgente que tenhamos uma política de controle de uso da força robusta, com supervisão dos agentes”, afirma Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Perfil das vítimas
Somando crianças, adolescentes e adultos, o número total de pessoas mortas por policiais militares em serviço em São Paulo cresceu 153,5% em relação a 2022, saltando de 256 para 353 em 2023 e chegando a 649 em 2024. Ainda sobre a faixa etária das vítimas, o estudo destaca a baixa qualidade no preenchimento dos boletins de ocorrência, o que compromete análises sobre o perfil: só no último ano, 2 em cada 10 registros não possuíam o campo idade preenchido, totalizando 134 vítimas sem informação na base de dados.
O estudo destacou que o crescimento da letalidade policial entre 2022 e 2024 afetou de forma desproporcional a população negra, incluindo crianças e adolescentes. Enquanto a taxa de mortalidade de pessoas brancas cresceu 122,8% em São Paulo no período, a de pessoas negras cresceu 157,2%. Entre crianças e adolescentes, a taxa de letalidade policial da Polícia Militar em serviço é de 0,33 para cada 100 mil brancos, enquanto para negros esse número sobre para 1,22 a cada 100 mil. Ou seja, crianças e adolescentes negros são 3,7 vezes mais vítimas de intervenções letais da Polícia Militar no estado do que os brancos.
Mudanças na política de segurança
O relatório revelou que, além do uso das câmeras, outras políticas e mecanismos adotados no passado sofreram mudanças significativas. Entre 2022 e 2024, houve 46% de redução no número de Conselhos de Disciplina – responsáveis por julgar praças que cometeram infrações ou crimes –, assim como 12,1% de redução no número de processos administrativos disciplinares, e queda na quantidade de sindicâncias e Inquéritos Policiais Militares (IPMs). No caso de IPMs, o volume registrado em 2024 foi o menor dos últimos oito anos.
Outra mudança aconteceu no funcionamento da Corregedoria da Polícia Militar. Desde junho de 2024, o órgão passou a depender de autorização do Subcomandante-Geral da PM para afastar policiais envolvidos em casos de atentado às instituições, ao Estado ou aos direitos humanos, o que pode impactar a agilidade das decisões.
A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) também propôs futuras alterações na política de câmeras corporais. Um edital lançado em 2024 previu que a gravação deixasse de ser contínua, passando a depender do acionamento por um policial ou por equipe remota, além de mudanças na capacidade de processamento das imagens. Segundo o relatório, que analisou pesquisas nacionais e internacionais sobre o tema, essas modificações podem comprometer a transparência e a efetividade do monitoramento das abordagens policiais – que têm se tornado mais violentas desde 2022.
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Fonte: Unicef, com edição de ANDES-SN