Interferência na programação acadêmica da Ufop ameaça autonomia universitária

Publicado em 04 de Fevereiro de 2025 às 18h35. Atualizado em 05 de Fevereiro de 2025 às 09h34

A organização da XXII Semana de Estudos da Escola de Minas da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), que ocorre entre os dias 3 e 7 de fevereiro de 2025, está no centro de uma polêmica que coloca em questão a autonomia universitária. Com o tema "Construindo Pontes para a Inclusão, Diversidade, Desenvolvimento Sustentável e Inovação na Era da Tecnologia", o evento sofreu pressões de patrocinadores para evitar debates sobre temas essenciais no estado de Minas Gerais, como os rompimentos de barragens em Mariana (2015) e Brumadinho (2019), e em outros municípios, e seus impactos judiciais, sociais e ambientais, além da realidade das vítimas e comunidades atingidas.

A censura foi direcionada às e aos participantes da mesa-redonda intitulada "Diversidade, Inclusão e Dignidade Humana: Avanços e Desafios para a Igualdade", que integra a programação do evento, solicitando que não abordassem os desastres causados pelo rompimento de barragens de mineradoras.

Um e-mail enviado pela organização do evento, em nome próprio e dos patrocinadores, pedia que as e os participantes evitassem tratar de temas como os “acidentes dos rompimentos das barragens de mineradoras”, além de questões judiciais, aspectos sociais, sobre as vítimas, questões sobre o meio ambiente, e demais assuntos relacionados ao tema. O comunicado também informava que “a mesa será composta por um mediador, ou mestre de cerimônias, que irá conduzir a discussão e os trabalhos realizados”, tendo, ainda, a responsabilidade de “evitar qualquer polêmica, ou discussão fora do tema, e o poder de intervir em qualquer circunstância se for preciso, e irá controlar o tempo estimado para cada etapa.”

Entre os patrocinadores do evento estão a Samarco, responsável pelo desastre-crime em Mariana, em 2015; a Mineradora Herculano, envolvida no rompimento de uma barragem em Itabirito, em 2014, que resultou em três mortes e cinco feridos, afetando a bacia do Rio das Velhas; e a Anglo Gold Ashanti, que possui um histórico de acidentes de trabalho, incluindo um episódio em que dois trabalhadores morreram. Além disso, o Ministério Público de Minas Gerais ajuizou uma ação contra essa empresa por acionamento indevido de uma sirene de alerta de rompimento de barragem em Santa Bárbara, gerando pânico entre as moradoras e os moradores.

Após a repercussão do caso, a comunidade acadêmica da Ufop, incluindo a Reitoria, sindicatos e outros movimentos publicaram notas de repúdio e uma carta aberta à diretoria da Escola de Minas. Entre as entidades que se posicionaram contra a interferência está a Frente Mineira de Luta das Atingidas e dos Atingidos pela Mineração (FLAMa-MG).

A Associação dos Docentes da Universidade Federal de Outro Preto (Adufop- Seção Sindical do ANDES-SN, que compõe a Frente, também se pronunciou sobre o caso. “O debate sobre rompimentos de barragens e seus impactos faz parte do cotidiano de alunos, servidores públicos e demais trabalhadores da Universidade e, sob a perspectiva de atingidos, não devem ser cerceados ou influenciados pelo poder econômico que tenta incidir sobre o fazer acadêmico”, destaca em nota da seção sindical.

Após os protestos, ainda no final de semana, a comissão organizadora enviou às e aos participantes um e-mail de retificação: “[...] reconhecemos que a forma como a informação foi redigida gerou interpretações equivocadas, e assumimos total responsabilidade pelo erro”.

Capital privado
Karine Carneiro, docente da Ufop e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa Socioambientais (Gepsa) da universidade que atua no reassentamento da comunidade atingida pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, ressalta que a tentativa de minimizar os desastres-crime das mineradoras e silenciar as comunidades atingidas é uma prática recorrente do setor.

“Esse acontecimento, para além da censura nele contida, nos chama a atenção para a necessidade de discutirmos um fato que vem se tornando cada vez mais vultuoso nas universidades públicas de nosso país, a saber, a entrada do capital de grandes empresas como forma de financiamento, fomento, apoio e patrocínio de atividades acadêmicas, principalmente de pesquisas e eventos”, criticou Carneiro.

Segundo a professora, em busca de legitimação técnico-científica, grandes empresas direcionam recursos expressivos para pesquisas de seu interesse, frequentemente impondo cláusulas de sigilo que comprometem a transparência. Para ela, essa prática desvia a universidade pública de sua função essencial, que é “produzir conhecimento com transparência e linguagem acessível para as pessoas e para a sociedade, com vistas a combater a desigualdade socioeconômica”, afirma.

Para Clarissa Rodrigues, 2ª vice-presidenta da Regional Leste do ANDES-SN, a tentativa de censura revela um esforço para silenciar debates fundamentais sobre os danos causados pela mineração na região.

“Esse cerceamento não é só um ataque à liberdade de cátedra e de expressão, ele também explicita um projeto de submeter a universidade pública aos interesses das grandes empresas, nesse caso, as mineradoras. Esse fato reflete uma concepção de universidade, que é o oposto do que o nosso Sindicato tem defendido nesses mais de 40 anos de história”, ressaltou a diretora do Sindicato Nacional.

Foto: Alice Carpes/Ufop

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